sábado, 14 de fevereiro de 2009

34. Parabéns Para Você


Minha irmã Edmée, querida e linda nonagenária, matriarca de um lindo clã, poetisa da Academia de Letras de Parnaíba, e educadora de muitas gerações de parnaibanos, avança hoje mais um passo na década dos noventa, rumo à nova etapa dos cem anos. Esta é a homenagem, pela data, do irmão caçula que a ama e idolatra, a edição de uma carta que lhe enviei no século passado sobre nosso pai.


Escassas são as recordações que guardo de papai. Lembro-me dele deitado na rede, armada no quarto contíguo à sala de jantar e aberto para o corredor, que levava da dita sala à cozinha, na iluminada e ensolarada casa que ele construíra para a família na Rua D. Pedro II, com dez janelas e três portas para o exterior. Essa lembrança permaneceu-me indelével, possivelmente porque carregada de forte emoção. Até pouco tempo atrás, nessa imagem mental papai representava o papel do punidor severo, de alguma traquinice que eu perpetrara. Ele reprimia intransigentemente qualquer tentativa, que eu fizesse, de deslocar-me do local onde ele me pusera sentado, às suas costas, um pouco à direita da rede, olhando, através das duas portas - a do quarto e a do corredor - para o quintal, repleto de árvores e flores, entre as quais assomavam as volumosas copas verdes das mangueiras, cujos galhos robustos foram o palco de paradisíacos momentos de minha infância.
O quadro é carregado de emoção também, porque naquele dia e àquela hora, Parnaíba se transportara borbulhante para a Coroa, por onde transitava a lendária aeronave alemã, o DOX. Consoante minhas recordações, somente nós dois, papai e eu, nos achávamos então em casa. Por mais estranho que me pareça, a ausência de mamãe e até mesmo a de Mãe-minha são partes constitutivas da imagem, à qual se acresce a absoluta sensação de silêncio preenchendo o vazio de todos os demais compartimentos daquele inesquecível e aconchegante lar de nossa mãe Nequinha! Bem recentemente alterou-se a minha interpretação do episódio: creio que eu, o filho caçula, fui a companhia obrigatória para meu pai, enfermo já quase terminal, que compactuara com a ausência de todos os demais familiares, que tanto ansiavam por ver, de uma forma ou de outra, indo à Coroa ou simplesmente saindo à rua, a famosa máquina voadora!
Conservo viva imagem da cena da morte de papai, que não me detenho a descrever, por motivos óbvios, à qual se pespega a do cortejo fúnebre exatamente quando passava em frente ao terraço da casa de D. Bela, para onde me esgueirara naquela oportunidade.
O mecanismo mental da associação livre sempre pinça do meu acervo subconsciente, associado à memória de papai, outro quadro, onde me situa na sala de jantar à extremidade da mesa, próxima à porta do malfadado quarto de minha pena, assistindo ao ingresso de Ioiô e tio José de Castro pelo corredorzinho que a liga à porta de entrada da casa. O burburinho da cena, desenhada em tons de penumbra, formou-me a convicção de que eles, por volta do meio-dia, haviam trazido papai, doente, da loja no carro do meu tio abastado, extrovertido, louro, janota, bonito e jactancioso - uma personalidade que eu admirava! Mas, papai integra esse quadro nebuloso, pela sua ausência, supostamente colocado pelo meu subconsciente em algum quarto da casa, vítima de alguma síndrome, e cuidado pelos familiares.
Da mesma forma - mas, nestas reminiscências apenas pelo parentesco - papai me une às presenças de Magno e Alcides, sentados e conversando naquela tranqüila sala de jantar daquela casa invadida de sol e ar por tantas portas e janelas, a nos regalar com doces saborosos trazidos do interior, entre os quais ressalta o de mangaba em calda, embalado em bem confeccionadas latas.
Sua mimosa peça oratória biográfica, proferida em homenagem a papai e promovida pelo imprevisível, singular e generoso irmão José, deu-me a conhecer outras particularidades da vida de nosso pai, e por isso venho agradecer-lhe ter-me proporcionado a satisfação dessa curiosidade.
Como você percebe, sinto papai como uma pessoa tão próxima que ele como que vive dentro de mim formando um núcleo afetivo, e paradoxalmente ele é para mim quase um desconhecido! Mas, o Gonçalo que sinto em minha afeição é uma mescla de João, Einar e Haroldo. E essa figura acho que corresponde à descrição que você, em estilo tão simples e belo, dele fez.
Entristecia-me o pensamento de que papai falecera precocemente, a despeito da insidiosa diabetes que o acaso genético lhe programara. Hoje, quando a história econômica do Brasil me ensina que a expectativa de vida do brasileiro na década de 30 limitava-se a 34 anos, sei que papai, apesar do “handicap” negativo programado no organismo, teve dez anos de sobrevida: ele não morreu prematuramente, para sua época.
Papai é o meu herói desconhecido, enquanto mamãe é a minha santa e a minha deusa. A casa que ele, homem simples, procedente do interior atrasado do Piauí no início do século, edificou em 1920 - uma das melhores de toda a rua D. Pedro II de minha infância - e a família numerosa que constituiu e sustentou, juntamente com o negócio que soube administrar, falam-me com eloqüência do meu querido herói quase desconhecido, que foi capaz de realizar um nível de vida acima da média do seu tempo!
Sei que você conhece muito mais do que eu a história do Piauí. Suponho que a história do Piauí e a de Parnaíba sejam ensinadas no primeiro e segundo graus de ensino em Parnaíba. Se é verdade que você pretende redigir uma biografia mais abrangente de papai, eu fico por aqui a refletir até onde você irá chegar. Os livros de árvore genealógica produzidos por piauienses, inclusive da família Castelo Branco, incluem papai nesse famoso clã piauiense que surge já nos primórdios do processo de formação do Estado do Piauí.
Pereira da Costa fala que João Gomes do Rego Barros, natural de Pernambuco, fidalgo da casa real, capitão-mor de São João da Parnaíba, pertencente a uma das mais importantes famílias daquela capitania, foi agraciado com a sesmaria do delta do Parnaíba. Ele contraiu matrimônio com Ana e Maria, em primeiras e segundas núpcias, filhas de D. Francisco da Cunha Castelo Branco, também fidalgo português, que aportou em São Luís pelos fins do século XVII e de lá se deslocou, poucos anos depois, para as terras piauienses, onde se localizou na região da atual Campo Maior. João Gomes e Francisco situam-se no alvorecer da colonização do norte do Piauí. São as duas mais relevantes figuras dessa epopéia estadual e nacional que é a colonização do norte do Piauí. Os dois matrimônios de Rego Barros deram origem à família Rego Castelo Branco, do Piauí, conforme o já citado historiador.
A segunda metade do século XVIII é dominada pelas façanhas de João do Rego Castelo Branco, o conquistador do Piauí, acolitado, quando se tornaram adultos, pelos dois filhos, Félix e Antônio do Rego Castelo Branco. Valente, ambicioso e cruel, a vida de João foi toda dedicada à guerra contra os índios do Piauí. Exterminou com requintes de desumanidade todas as diversas tribos tapuias que não concordaram em se submeter ao domínio português, sem perdoar mulheres e crianças. Coloco João do Rego Castelo Branco no rol dos Bandeirantes, até mesmo pelo seu projeto de atingir o Rio do Sono, no norte de Goiás, onde supunha achar-se a Lagoa Dourada, para cuja realização, velho e praticamente cego, aceita a incumbência governamental de fazer a guerra contra os índios pimenteiras sublevados, que obstruíam o caminho para o Centro-Oeste.
A História é a História. Ela é a responsável pelo que somos hoje. Nada há por que se arrepender, nem por que pedir desculpas. A História é o que teria que acontecer, para que nós existíssemos hoje. Aquela era a mentalidade da época. Não teria sido a mentalidade de todas as eras históricas passadas? Não seria, em grande parte, a mentalidade da Humanidade em nossos dias? Não estaríamos nós, uns poucos idealistas, lutando de todos os modos, por fazer brotar uma outra Civilização? Uma outra Humanidade?
Comparo João do Rego Castelo Branco a Fernão Dias e Borba Gato que, matando indígenas, infelizmente, e escravizado-os contribuíram para formar o Brasil que hoje somos. Como também acho que Mandu Ladino - o Che Guevara piauiense do início do século XVIII, cuja vida consistiu na luta armada contra os portugueses no Piauí, e morreu em combate nas proximidades de Parnaíba - é um herói nacional e racial, tão grande quanto Zumbi, predecessor de Tiradentes e a ele comparável, conquanto despojado da ideologia liberal das Revoluções Francesa e Americana, e igualmente desprovido do sentimento de nacionalidade brasileira que animava os Inconfidentes. Mandu Ladino era, como o chefe revolucionário dos tempos modernos, o líder indígena que se dedicou a resistir contra a espoliação e o extermínio de seu povo bem como a lutar pela preservação da posse indígena da terra!
Voltemos, para concluir, a João do Rego Castelo Branco. Ele surge na história do Piauí como cabo, passa a capitão, ascende a tenente-coronel e vai até compor uma junta governativa da Província. Percorreu todo o território piauiense, de norte a sul, e penetrou nas terras do Maranhão em excursões bélicas contra os indígenas. Foi a Parnaíba dominar a rebelião dos Teremenbés - “os peixes racionais” - exímios nadadores, belos e fortes, que acabaram confinados na ilha do Caju. Suspeito que João do Rego Castelo Branco haja passado sua infância entre Parnaíba e o Rio Poti (“o rio dos peixes de pela manchada”), este, sesmaria de Domingos Jorge Velho, enquanto aquelas terras do norte eram dominadas na primeira metade do século XVIII pelos Rego Barros e Castelo Branco.
Minha irmã, não me julgue pretensioso. Não tenho a veleidade de nada ensinar-lhe, pois sei quão lida e culta você é. Admiro-a. Estou-lhe apenas confidenciando as indagações que me povoaram a mente, no ensejo em que tomei conhecimento do que você escreveu com tanta beleza sobre papai, especialmente sobre os Rego que se disseminaram pelas terras de Barras, Batalha, Miguel Alves, União, José de Freitas, Oeiras, Parnaíba e Teresina.
(Escrito no ano de 1994)

2 comentários:

  1. Emocionante....a intensidade das palavras e dos fatos me fez conhecer uma versão da historia da nossa família que não era do meu conhecimento, apesar da vovó sempre ter se preocupado em me transmitir várias passagens.
    Parabéns!!! Beijos, Georgina

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    1. Georgina, minha sobrinha adorada
      Somente hoje, dia l6 de junho de 2014, li a o seu comentário. Agradeço por me ter honrado com seu comentário, minha ilustre advogada. Fique certo de que me lembro de você e de todos os nossos que aí moram, Marta, sua mãe Maria, seu pai e seus irmãos com muito afeto e saudade. Um beijo carinhoso do
      tio Edgardo

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