Esse
assunto de Soberania Popular já foi debatido e vivido ao longo dos milênios da
História. Até a Idade Moderna o que mais existiu foi a soberania divina e a
soberania da força. O poder supremo organizador da sociedade era detido ou por
indivíduo escolhido pela divindade ou por indivíduo dotado de capacidade para
coagir a população.
A
exceção foi Atenas que, durante certo período, adotou a Democracia Direta. O
poder político, o poder de governar a cidade pertencia ao Povo, ao grupo dos cidadãos
de Atenas, aquele grupo de homens nascidos em Atenas, que custeavam os gastos
da cidade e que faziam as guerras da cidade.
Os
cidadãos de Atenas reuniam-se com frequência regular na Ágora e pessoalmente
participavam das decisões conjuntas sobre matérias de interesse da
coletividade. Cada cidadão tinha a oportunidade de pronunciar-se, durante o
tempo em que um relógio de areia se esvaziava. Os atenienses, naquele período,
viveram sob o regime político democrático: o Povo detinha o Poder Soberano, o
conjunto de todos os cidadãos de Atenas detinha o Poder Supremo de Governar a
cidade. E essa Democracia era direta, isto é, cada cidadão pessoalmente
participava das decisões nas matérias do interesse da cidade.
Durante
os vários séculos da Idade Média, o Poder Soberano foi considerado dádiva
divina a um indivíduo ou a uma família. Até que no início do século XVI,
Nicolau Maquiavel, em “O Príncipe”, desenvolveu a teoria de que o Poder
Soberano é conquista do Príncipe, consequência de suas Qualidades e da Sorte.
Entre essas qualidades avulta a Crueldade extrema como norma de relação com os inimigos
e a Generosidade irresistível como regra de relacionamento com os parceiros, e,
sobretudo, a Astúcia em aparentar essas qualidades na sua conduta com relação a
toda a população. Nicolau Maquiavel já acreditava, e muito, no MARKETING!
Por
fim, no século XVII e XVIII, consagra-se a teoria de que o Estado é a
organização das relações de convivência da população de determinado território
realizada por vontade desse Povo. Hobbes e Locke afirmam que o Estado é produto
cultural, resultado de um contrato entre os habitantes de um território,
fundamento constituinte de uma sociedade organizada. Montesquieu, impressionado
com a organização política da Inglaterra do século XVIII, afirma que o Poder
Soberano pertence ao Povo e é exercido pelo Rei em conjunto com os representantes
do Povo, reunidos no Parlamento, o famoso princípio da separação dos três
poderes, independentes e harmônicos: legislativo, executivo e judiciário.
Jean
Jacques Rousseau, nesse mesmo século, e por essa mesma época de Montesquieu, em
seu famoso livro “Do Contrato Social” afirma que o Estado é organizado pela
VONTADE GERAL, isto é, o Povo detém o Poder Soberano, o Poder Supremo de
Organização da Sociedade. É o Princípio da Soberania Popular.
O
que é a Soberania Popular? É o Poder do “corpo moral e coletivo de todos os
cidadãos” (o Estado), formado pelo Contrato Social e guiado “pelo benefício
público”, isto é, nas suas decisões “considera apenas o INTERESSE COMUM”,
responde Rousseau. O cidadão, portanto, ao exercer o Poder Soberano, se orienta
exclusivamente pelo Bem Público, pelo Bem Comum. E nisso é que consiste uma
República: “todo Estado que é governado por leis... pois é somente em tal caso
que o interesse público governa e a res publica constitui uma realidade...”,
explica Rousseau. É isso precisamente que nos está dizendo o Preâmbulo e o
artigo 1º da Constituição Brasileira: “Constituição da República Federativa do
Brasil” e “A República Federativa do
Brasil”.
Foi
essa ideia da Soberania Popular que produziu, em 4 de julho de 1776, o primeiro
Estado sem rei: Os Estados Unidos da América. E, logo a seguir, em 1789, a
Revolução Francesa, quando o Povo, detentor do Poder Soberano, destrona o Rei e
provoca a formação da Assembleia Constituinte, a reunião dos representantes do
Povo para organizarem o novo Estado Francês.
Abraham Lincoln declarou, quase um século
depois, em seu curtíssimo e mais famoso discurso, o de Gettysburg: “Há 87 anos,
os nossos pais deram origem neste continente a uma nova Nação, concebida na
Liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais... que
esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo,
pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da terra.”
Essa
famosa expressão de Lincoln reproduz-se no parágrafo único do artigo 1º da
Constituição Brasileira, que consagra o Princípio da Soberania Popular – “Todo
o poder emana do Povo” -, o Princípio Constitucional fundamental do Estado
Brasileiro, sobre o qual se apoia toda a estrutura organizacional da sociedade
brasileira. O Estado Brasileiro é uma República, uma sociedade democrática,
isto é, sociedade de cidadãos que se governam, LIVRES E IGUAIS, porque, como explicaram
Péricles e Rousseau, a nenhuma outra pessoa se acham sujeitos, já que se
submetem somente às leis que eles mesmos elaboram.
Essa
doutrina triunfante, todavia, não era unanimemente admitida naqueles tempos da
Revolução Francesa. Contemporâneo de Montesquieu e Rousseau, Voltaire, talvez o
mais glorificado vulto do Iluminismo, posicionava-se contra a Democracia,
entendida como Estado fundado na Soberania Popular: “Poderíeis conceber o povo
investido de soberania?... Deus me livre!” “Não gosto de democracia pela
plebe.” “Quanto mais esclarecidos são os homens, mais livres serão.”
Não
era só a ignorância que justificava a Assembleia Constituinte de representantes
do Povo. Acrescentavam-se os motivos do vasto território, a grande população do
reino francês e a sofisticação dos assuntos políticos a exigir especialistas e
tempo disponível para discerni-los.
Assim,
o próprio Rousseau, reconhecendo todas essas circunstâncias, entendia que “a
Vontade Geral não admite representação. Os deputados do Povo, portanto, não são
e não podem ser seus representantes; são seus meros procuradores e não podem
levar a efeito atos definitivos. Toda lei que o povo não ratificou em pessoa é
nula e vazia... O povo da Inglaterra se considera livre, mas trata-se de um
enorme equívoco; ele só é livre durante a eleição dos membros do Parlamento.
Tão logo estes são eleitos, a escravidão sobrevém e ele nada é...” O Poder Legislativo, segundo Rousseau, é
exercício do Poder Soberano. Já o Poder Executivo é exercido por “Um corpo
intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano..., encarregado da execução
da lei e da manutenção da liberdade, tanto civil como política... Os membros
desse corpo são chamados de magistrados ou de reis, o que vale dizer
governantes...”
Paulo
Bonavides, em seu livro “Ciência Política”, na sua 17ª edição de 2010,
Malheiros Editores, explica que a teoria da Representação, triunfante com a
Revolução Francesa, não foi a da identidade Representante/Representado, como
entendia Rousseau, mas a da duplicidade Representante/Representado: “”Com
efeito, toma-se aí o representante politicamente por nova pessoa, portadora de
uma vontade distinta daquela do representado, e do mesmo passo, fértil de
iniciativa e reflexão e poder criador. Senhor absoluto de sua capacidade
decisória, volvido permanentemente... para o bem comum, faz-se ele órgão de um
corpo político espiritual, a nação, cujo querer simboliza e interpreta, quando
exprime sua vontade pessoal de representante.”
Grandes
líderes da Revolução Francesa deixaram bem claro que essa era a teoria que os
orientava. Cite-se apenas o testemunho de Condorcet: “Mandatário do povo, farei o que cuidar mais
consentâneo com seus interesses. Mandou-me ele expor minhas ideias, não as
suas: a absoluta independência das minhas opiniões é o primeiro de meus deveres
para com o povo.”
Ensina
ainda Paulo Bonavides que a independência do representante se acha consagrada
em livros de grandes mestres da Teoria da Constituição, como o de Carl Schmitt,
onde se lê: “Assim é que, de um acordo tão universal e sistemático como o da
representação, o que enfim parece haver ficado na consciência da Teoria do
Estado é que o representante não se acha sujeito às instruções e diretrizes de
seus eleitores.”
Paulo
Bonavides ensina que essa teoria da duplicidade Representante/Representado
triunfou no século XIX e era o fundamento dos governos e das políticas
liberais. O Povo destruiu a Bastilha, matou o nobre chefe da guarda que
mantinha os detentos políticos naquela famosa prisão. Quem, todavia, o
representou na Assembleia Constituinte, foi o representante nobre ou burguês. A
Revolução Francesa, diz-se, não foi o triunfo da população, mas o triunfo da
burguesia, que se apoderou da representação popular, para dirigir a França em
conformidade com os interesses da sua classe.
Durante
décadas a França e as muitas Repúblicas, que surgiram foram governadas segundo
os interesses burgueses, bem diferentes da Vontade Geral da população. Os
representantes burgueses menosprezavam a população e até a temiam, a exemplo de
Voltaire.
Creio
patente que esse clamor das manifestações populares de rua brota da sensação de
que os representantes do Povo Brasileiro hajam adotado conduta política
divorciada do Bem Público. O cidadão brasileiro teria chegado à conclusão de
que os representantes do Povo não estão se conduzindo de acordo com a
Constituição Brasileira. Ao invés de perseguirem o Bem Público, ter-se-iam
desgarrado na perseguição de interesses particulares, próprios e de grupos.
Caro Edgardo,
ResponderExcluirSempre aprendo muito com você. Obrigada!
É um luxo termos suas análises ao nosso alcance para nos fazer pensar, com maior profundidade, sobre a importância de vivermos e aproveitarmos ao máximo esse momento.
Um abraço.
Estimada amiga Tania
ResponderExcluirObrigado pelo estímulo. É isso exatamente o que tento. Acredito, com Max Weber, que não é apenas a condicionante circunstância material que impulsiona a Humanidade. É muito importante também, entre outras circunstâncias, a CULTURA, a MENTE com que cada pessoa, cada sociedade e cada TEMPO, encara AS CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE VIVE. Nós somos produto da SOCIEDADE e produzimos a SOCIEDADE.
Edgardo Amorim Rego