sábado, 21 de março de 2009

68. No Princípio Era o Verbo


O autor do chamado quarto evangelho, judeu helênico de Éfeso, cidade cosmopolita na virada do século I EC, quando o livro deve ter sido escrito, referia-se ao início do Gênesis, quando escreveu o versículo 1 do capítulo 1 da sua obra: "No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus."
O Gênesis é o primeiro livro do Tora, o livro sagrado dos judeus, ou do Pentateuco, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento dos cristãos. O Gênesis contém a narração do início do Universo e do Homem, da origem do mal e da aliança que Deus se comprazeu em pactuar com o povo de Israel.
Penso que os livros sagrados dos israelitas e dos cristãos não são livros que possam ser cientificamente rotulados de históricos. Eles não satisfazem as exigências das normas da história científica. Eles são livros de crença. São expressão da fé de israelitas e cristãos. Nada obstante isso, eles se conectam muitas vezes a fatos históricos. Mas, quem os redigiu não tinha preocupação de elaborar uma narração fidedigna dos acontecimentos. Eles se referiam a esses fatos sob a perspectiva de sua crença. E era essa perspectiva da crença que de fato lhes interessava.
Os cientistas costumam, por isso, referir-se a essas narrativas como mitos, fábulas, fabulações, isto é, construções subjetivas de mentes que construíram uma narrativa, que une de tal modo o real e o imaginário, que torna difícil ou mesmo impossível separá-los, ou são simplesmente construções mentais fantasiosas. Minha intenção é expor aqui algumas reflexões sobre a composição desses livros.
As minhas reflexões nada interferem na crença das pessoas. Uma pessoa não crê em determinadas coisas porque elas são lógicas e racionais. Se elas crêem, porque são racionais, elas não têm fé, elas são filósofas. As pessoas religiosas crêem em determinadas coisas por um único motivo, a saber, elas são revelações de Deus.
Admite-se que ali, logo no início do Gênesis, existam duas narrativas diferentes do início do Universo. A primeira compreende todo o capítulo 1 e os quatro primeiros versículos do capítulo 2. A segunda se estende pelo restante do capítulo 2.
Na primeira versão, Deus é um mágico: ele cria todas as coisas, como um mágico, simplesmente utilizando a palavra ou o pensamento, faça-se. No meu entendimento, é a esse Faça-se que o evangelista se reporta. Deus é o Faça-se. Na minha infância, aprendi com os sacerdotes que Deus é espírito e criou o Homem à sua imagem, porque infundiu no corpo uma alma espiritual. Acho que não é isso que está dito ali no início do Gênesis. Ali, a meu ver, diz-se o que o evangelista entendeu: Deus é o Faça-se, é o poder de criação, o ímpeto criativo, a energia criativa, o processo criativo, o devir.
E mais adiante, no versículo 27 do capítulo 1 do Gênesis, o autor revela o que ele pensa ser Deus e por que o Homem é macho e fêmea: "Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea ele os criou." Deus é macho e fêmea. O Homem é macho e fêmea. O que caracteriza Deus é o ímpeto procriador, a energia criativa, o mistério da atividade do macho e da fêmea, o Faça-se, o devir. Deus é o processo de transformação que tudo gera, que inventa e assume todas as formas da Natureza. Deus é o Universo.
Impressionante que formulação semelhante vai-se encontrar nos livros religiosos da cultura hindu. O Hino da Criação no Rig Veda fala emotivamente do Único Um: "Nem Alguma Coisa, nem Nada existia...O Único Um respirava sem fôlego por si mesmo. Outro além dele nunca havia sido... O germe que ainda jazia coberto pela casca irrompe do fervente calor. Então vem sobre ele o amor, a nova fonte do conhecimento – sim, poetas em seu coração discerniram esse salto entre as coisas criadas e não criadas. Vem esta faísca da terra, tudo atravessando, ou vem do céu? Então as sementes foram semeadas, e poderosas forças surgiram... Quem sabe o segredo?...De onde, de onde esta múltipla criação procede? Os próprios deuses vieram depois... O Altíssimo Vidente, que está no mais alto céu, ele o sabe – ou talvez nem mesmo ele."
A respeito desse Único Um esclarece um dos Upanishads: "Na verdade ele não tinha prazer. Um só não tinha prazer. Ele desejou um segundo. Ele era, na realidade tão grande como uma mulher e um homem abraçados..." Ele sabia: eu realmente sou esta criação, porque eu emiti tudo de mim mesmo. O Único um, na realidade, resultava do portentoso abraço de amor de um macho e uma fêmea. E esse portentoso abraço de amor tudo produziu, até os deuses. Deus é a repulsa da solidão. Nem Deus suporta a solidão!... A felicidade reside na convivência, na harmonia amorosa. O Único Um é o ímpeto de reproduzir, o desejo de multiplicar-se, o processo da transformação, o devir, a paixão pela convivência, o desejo da convivência, a paixão de amar, a palavra criadora, a convivência do Amor.
E o Único dos Upanishads nos conduz, dessa forma, ao Tao do I Ching dos chineses. Só existe o Tao, o perpétuo fluxo, o devir, o processo de transformação marcado pelo eterno ciclo entre os opostos: Yang, o macho,e Yin, a fêmea. O Tao é o fluxo cíclico das coisas, oscilando entre os extremos opostos Yang (o macho, o Céu, o sol, o dia, etc.) e Yin (a fêmea, a Terra, a lua, a noite, etc.), em cuja harmonia reside o bem, a felicidade. A felicidade não consiste apenas no Yang, nem apenas no Yin. A felicidade é resultante do equilíbrio entre o Yang e o Yin, ela é Amor, Amizade. Ela é convivência. Ela é cidade. Ela é civilização. O homem civilizado é o homem urbano.
E não resisto a outra ilação que o movimento espontâneo da mente insiste em fazer. No famoso diálogo Críton de Platão, onde Sócrates debate com o amigo Críton a recusa à fuga para livrar-se da pena de morte, o portentoso filósofo declara que à cidade, ao grupo social, deve o que é: "Então, após dever-nos o nascimento, o sustento e a educação, terás a petulância de argumentar que não és nosso filho e servidor, da mesma maneira que teus pais?... Porventura tua sabedoria te faz desconhecer que a pátria é mais digna de respeito e veneração entre os deuses e os homens que um pai, que uma mãe e que todos os parentes juntos?"
Também na cultura grega vamos encontrar Heráclito afirmando que só o devir existe, o perpétuo fluxo, o perpétuo processo de começar e findar, nascer e morrer. Interessante que a ciência moderna contém entre seus achados mais fundamentais o famoso princípio da conservação da massa: "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma." E Charles Darwin veio nos revelar que o devir vem, ao longo das eras, criando novas formas de vida num processo de ajustamento ao meio ambiente, de harmonização com o ambiente, que nos lembra a convivência harmoniosa preconizada no Gênesis, nos Upanishads e no I Ching.
E as duas físicas do século XX, a Cosmológica e a Quântica, nos dizem que o Universo é um processo gigantesco de transformação, movido por forças opostas de expansão e de contração, que teve início em condições de dimensões infinitas, isto é, fora do alcance das condições atuais do conhecimento humano, que podem ser tentativamente designadas pelo nome de Big Bang, a Grande Explosão. Rigorosamente falando, não existe o antes do Big Bang, porque ali surgiu a matéria e a energia, ali surgiu o espaço e o tempo, porque tempo e espaço são características da matéria e da energia. O Universo é espaço-tempo em perpétua expansão e contração, em perpétua transformação. Assim, na medida em que o Universo nasceu com o Big Bang, em que o antes do Big Bang não existe, o Universo é eterno, ele é o próprio tempo. E, como na intuição do Tao do I Ching, o Universo só existe na medida em que é equilíbrio entre as forças de atração e expansão!
A lição básica que nos lega a Cosmologia contemporânea é que só subsiste aquilo que no momento atual do devir está adaptado às circunstâncias existentes. Nós Homens somos os organismos vivos mais bem adaptados às condições ambientais proporcionadas pelo sistema solar. O Universo é um vasto e portentoso abraço de Amor. Todas as formas, todas as coisas, inclusive o Homem, são criadas pelo Verbo original, o Faça-se, a palavra portentosa e procriadora emitida pelo Amor.

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