domingo, 1 de março de 2009

48. A Profecia de Thomas Jefferson (continuação)


2. O preconceito da sociedade agrícola contra o negociante.

O pai de Thomas Jefferson casou-se com uma latifundiária da Virgínia. As posses da família, na juventude de Jefferson, consistiam em propriedades: sete mil e quinhentos acres, cinqüenta e três escravos, vinte e um cavalos e outros animais de fazenda. O pai conseguiu incutir-lhe a paixão pelo estudo e pela cultura. Quando o pai faleceu, Jefferson tinha apenas 14 anos.
Ele estudou no colégio de um pastor protestante das vizinhanças e, já administrando a propriedade da família, estudou, em seguida, Direito com um advogado, como era ali costume naquela época, pois ainda não existiam universidades no Estado da Virgínia nos tempos de Thomas Jefferson. Muito jovem ainda, advogava por todo o território da Virgínia, a mais populosa das colônias inglesas na América do Norte e onde primeiro surgiu o movimento de independência dos Estados Unidos. Cedo ingressou na política. Escrevia muito bem, mas não era orador.
Jefferson casou-se com uma viúva, herdeira de fazendeiro rico da Virgínia. Viveu de 1743 até 1826, oitenta e três anos, grande parte deles na sua suntuosa e famosa residência, Monticello, construída por ele no alto de uma colina, em estilo clássico, nas vizinhanças de Charlottesville, na Virgínia.
Afirma-se que dava escravos de presente e não libertou nenhum deles. Dizem que, quando escreveu a Declaração da Independência, já acrescera o número de seus escravos para 180 e, na época de sua morte, já atingira a quantidade de 260 escravos. Contam que teve filhos com uma bela escrava sua, de nome Sally Hemings. Sem dúvida, o papel de escravocrata enodoa parte da personalidade do grande paladino dos ideais de liberdade e igualdade com que ele marcou a sua presença na História. Houve até historiador norte-americano que afirmasse que ele foi uma fraude e seus ideais não serviam de nada. Biógrafo de Thomas Jefferson afirma que ele considerava o negro uma raça inferior.
Ele nasceu fazendeiro e morreu fazendeiro. Como fazendeiro, interessava a desaprovação cristã ao lucro do negociante e aos juros dos banqueiros: "O espírito egoísta do comércio não conhece países e não sente paixão ou princípio, exceto o do lucro." E repudiava empréstimos e banqueiros: "Não gastes o teu dinheiro antes de o teres na mão."
O que importa para nós, aqui e agora, é que Thomas Jefferson foi um fazendeiro instruído. Ele estava bem informado sobre o que se pensava sobre a economia no seu tempo. Sem dúvida, assimilara a idéia mercantilista, a doutrina prevalente por três séculos na Europa, de que a riqueza de uma nação consistia no acúmulo de ouro e prata: "O dinheiro e não a moral é o princípio das nações fortes." Essa mentalidade levou Espanha e Portugal a se interessarem mais pela descoberta de ouro e prata nas Américas do que pelo desenvolvimento do comércio e produção agrícola. Adotando o mercantilismo e a pirataria, Inglaterra, França e Países Baixos trocavam mercadorias por ouro e prata com Espanha e Portugal. O aumento do estoque de ouro e prata, isto é, dinheiro, já no século XVI produzira tão significativo aumento de preços das mercadorias que Jean Bodin, economista francês, formulou a tese básica da teoria monetária: o volume de moeda tem influência sobre os preços e, portanto, sobre o nível de comércio, sobre o nível da atividade econômica. Muito dinheiro, inflação; pouco dinheiro, deflação.
Percebo que não era exatamente o ouro e a prata, o dinheiro, que Thomas Jefferson repudiava. Nem era exatamente o papel-moeda o que ele detestava. Haja vista que nas suas passionais divergências com Alexander Hamilton, ele se opunha ao aumento de impostos, mesmo para liquidar as dívidas da Guerra da Independência, financiada com papel-moeda, a Nota Continental, emitido pelo Congresso Continental. Ele não parecia opor-se, estranho isso, ao papel-moeda emitido pelo Governo! Nas décadas seguintes à Revolução Francesa, ele testemunhou a emissão dos assignats, o papel-moeda emitido pelo governo da Revolução Francesa para financiar as despesas do movimento. Ele se opunha ao papel-moeda emitido pelos bancos, à nota bancária. Ele temia a expropriação dos bens dos donos de terra pelos bancos, já que, acredito pensava ele, o governo não iria cometer essa violência. Aliás, ele também se insurgia contra o Governo forte e o governo empresário.
Provavelmente sabia o que acontecera na França, na segunda e terceira décadas daquele mesmo século XVIII, quando o Regente do infante Luís XV permitiu que John Law abrisse um banco emissor de notas, garantidas por terras da Louisiânia, supostamente rica em veios de ouro. O rei não mais teve limites de despesas. Os acionistas ficaram tão ricos, que criaram a palavra milionário para alcunhá-los. Os comerciantes também se enriqueceram com empréstimos. O povo encontrou emprego. Todos viveram quatro anos de felicidade na França. Em julho de 1820, um nobre desconfiado vai ao Banque Royale e apresenta notas exigindo a troca por ouro. O ouro não existia. A notícia se espalhou. O pânico baixou. As ruas de Paris se atulharam de carruagens e carroças com notas do banco para troca por ouro, que o Banque Royale de John Law e do Regente não possuía. A França num átimo ficou sem dinheiro. A arca real vazia. Os milionários arruinados. E o povo na miséria. Jefferson não profetizou. Ele conhecia História.
Isso corresponde exatamente ao infortúnio nacional que a diatribe de Thomas Jefferson, sob consideração, descreve: o processo de fastígio, inflação e recessão. Ele percebia que a euforia, gerada pelo excesso de empréstimos bancários, descamba para a execução dos prestamistas e, por fim, para o pânico, a crise financeira. Jefferson opunha-se à execução das dívidas dos pequenos agricultores e confisco de suas propriedades pelos bancos. No Brasil, houve, nos Governos Militares, a experiência com o Banco Nacional da Habitação. Ainda bem que era um banco público. Mas, foi fechado em razão do insucesso financeiro. Agora nos Estados Unidos estamos assistindo ao descalabro do descomedido financiamento de residências. No Brasil, estamos testemunhando novamente o entusiasmo pelos empréstimos habitacionais. Faço votos de que sejamos bem sucedidos.
Ele sabia que era exatamente isso que os bancos na Inglaterra faziam: fabricavam papel-moeda. Capitalistas se reuniam para fazer um banco colocando ouro e prata como capital inicial. Os bancos guardavam o ouro e a prata e emitiam nota bancária, onde se escrevia a garantia de que se trocaria essa nota bancária pelo equivalente em ouro e prata, quando o portador da nota bancária o exigisse. A tentação era irresistível para que se emitisse nota bancária sempre que se concedesse empréstimo: o cliente saía do banco com papel-moeda (não com ouro ou prata) para fazer seus pagamentos. Hoje você raramente recebe empréstimos em nota bancária. Recebe-se em depósito bancário. O cliente sai do banco com um talão de cheque, mais modernamente, com um cartão de crédito. Assim, os bancos fabricavam, e continuam fabricando, mais dinheiro do que o Governo. Economicamente, os banqueiros eram mais poderosos do que os governos.
Aliás, o Banco da Inglaterra fora criado em 1694, meio século apenas antes do nascimento de Thomas Jefferson, exatamente para isso para criar dinheiro, papel-moeda, para o rei, Guilherme de Orange, fazer as suas guerras... No final do século XVIII, quando Thomas Jefferson, já representava os Estados Unidos perante o governo francês, o Banco da Inglaterra já se tornara o único emissor de papel-moeda na Inglaterra, fiscal dos bancos ingleses e, ainda vivo o herói norte-americano, garantidor do dinheiro dos depositantes em ocasiões de pânico bancário. Thomas Jefferson conhecia o precedente inglês da proibição da emissão de papel-moeda pelos bancos privados.
Ele conhecia todos esses fatos e aquela famosa frase de Thomas Jefferson exatamente se insurge contra o poder dos bancos privados. Na Inglaterra existia o controle da emissão de papel-moeda pelo Banco da Inglaterra. A França, em 1800, criara o Banco da França. E na colônia inglesa na América do Norte nem banco existia legalmente. Não percebo na manifestação daquele Pai Fundador preocupação com a emissão de dinheiro pelo governo. Interessante é a observação de Galbraith a respeito do Banco da Inglaterra: inexiste fiscal para o Banco Central. O Governo? Mas o Banco Central é o banco do Governo. Quando existir conflito entre interesse do governo e controle da emissão de papel-moeda, a favor de quem se decide? Numa guerra, por exemplo?...
Na América do Norte, colônia inglesa, não havia banco legalmente constituído, não havia nota de banco norte-americano, mas havia moeda diversa do ouro e prata. O próprio Estado natal de Thomas Jefferson, a Virgínia, tinha o fumo como moeda corrente legalmente estabelecida. E essa moeda era degenerada, corrompida, de modo que, de acordo com a Lei de Gresham (a pior moeda expulsa a melhor moeda) era, de fato, a moeda comumente usada não somente naquele Estado como em muitos outros. E os fazendeiros, é claro, apreciavam o fato, porque o fumo era produzido por eles. E, curioso, era a principal produção das fazendas de Thomas Jefferson. Interessante que Galbraith afirma, mediante citação de outro autor, que a emissão do papel-moeda pelo Governo é invenção norte-americana para o mundo cristão, e inventado para custear guerra da Colônia da Baía de Massachusetts contra Quebec, em 1690!...
A favor do arraigado preconceito cristão de Thomas Jefferson a favor dos agricultores e contra os negociantes, sobretudo os banqueiros, erigiam-se até as novas teorias econômicas que surgiam na França e na Inglaterra. Até pouco antes de Thomas Jefferson chegar a Paris como representante do governo norte-americano, era Ministro das Finanças de Luís XVI, o famoso Anne Robert Turgot, que adotava a teoria econômica dos Fisiocratas.
O cristão fazendeiro Thomas Jefferson era um intelectual de seu tempo. Partilhava do espírito da época, o Iluminismo, de Voltaire, os Enciclopedistas, John Locke e Jean Jacques Rousseau. Deus, o grande arquiteto do Universo, criou essa fabulosa máquina, que é o Universo. E fá-la funcionar segundo certas normas: as leis divinas. Assim, ao observar o Universo, o homem percebe que ele funciona segundo determinadas normas, o homem descobre as leis naturais. As leis naturais são aquelas leis divinas dadas à natureza por Deus. Essas leis naturais regem todo o Universo: a atividade dos astros, do solo, das plantas, dos animais, da conduta humana e da produção da riqueza.
E aqui entrava François Quesnay, o médico de Madame Pompadour, que ela fez médico de Luís XV. Ele se tornou economista aos 62 anos de idade. François Quesnay foi o grande expoente das idéias que compõem a considerada primeira doutrina econômica moderna, a Escola Fisiocrata (a supremacia da Natureza). A idéia básica dessa doutrina é que só a Natureza produz, isto é, só a agricultura produz riqueza. O comércio e a indústria nada produzem, não agregam valor, são estéreis. Toda a sociedade vive do que a agricultura produz: os proprietários de terra, os trabalhadores agrícolas e os comerciantes e artífices. Os trabalhadores ficam tão-somente com o imprescindível para a subsistência. Tudo mais (o produto líquido) fica com o proprietário de terra. Os outros (comerciantes e artífices) participam da renda do proprietário, na medida dos interesses dele.
Comerciantes e artífices são parasitas da sociedade. São marginais. Abocanham o que pertence ao fazendeiro. Os donos de terra, como Thomas Jefferson, não gostavam dos comerciantes e fazendeiros. Muito menos de banqueiros. Os comerciantes e artífices assaltavam os fazendeiros com preços injustos (o lucro). O lucro seria um roubo, um assalto. Pior eram os banqueiros: assaltavam cobrando juros. Vê-se que é uma nova roupagem da idéia medieval: só Deus produz, o homem simplesmente colabora.
Por sinal, o terceiro maior expoente da Escola Fisiocrata foi Pierre du Pont (sim, é ele mesmo, o fundador de uma das mais importantes e mais duradouras empresas do mundo, a Dupont). Ele emigrou para os Estados Unidos exatamente na época, em que Thomas Jefferson foi eleito presidente dos Estados Unidos.
As idéias econômicas de Quesnay, Turgot e Dupont, as idéias sobre a riqueza, coincidiam com as idéias cristãs. Elas se opunham às idéias de Richelieu e Mazarino, ministros dos reis Luís XIII e Luís XIV, respectivamente, para os quais a riqueza era o acúmulo de dinheiro, acúmulo de ouro e prata.
Exatamente no ano da Declaração de Independência dos Estados Unidos, no ano 1776, Adam Smith escreveu o Riqueza das Nações, identificando a produção de bens como a riqueza de uma nação. Logo a seguir, outro gigantesco vulto dessa teoria econômica liberal do mercado, David Ricardo, identificava os agricultores como os grandes detentores da riqueza produzida num país, o mar para onde converge toda a riqueza produzida num país. O ilustrado fazendeiro cristão Thomas Jefferson certamente considerava atualíssimas, moderníssimas, as suas idéias favoráveis à agricultura e preconceituosas a respeito dos negociantes e dos banqueiros.
Aliás, até mesmo Adam Smith não deixou de verberar a desmedida ambição dos negociantes, sempre propensos a erigirem monopólios: "pessoas do mesmo ramo raramente se reúnem,... mas quando o fazem a conversa termina numa conspiração contra o público, ou então num conluio para aumentar os preços." Outra observação muito oportuna de Galbraith a respeito das idéias de Adam Smith: ele não tinha boa opinião das sociedades anônimas. Disse Adam Smith: "(Os acionistas) raramente procuram entender dos negócios da empresa; e, quando o espírito faccioso não prevalece entre eles, nem se importam com isso, mas recebem com prazer os dividendos semestrais ou anuais, conforme os diretores acharem melhor distribuí-los." E acrescenta: "sem qualquer privilégio exclusivo... (as sociedades anônimas) de um modo geral têm agido mal no comércio. Quando gozam de privilegio exclusivo, têm administrado mal e restringido a ação da empresa." E sobre os famosos administradores das sociedades anônimas: "...sendo os administradores do dinheiro de outrem em vez do seu próprio, não se pode esperar que cuidem dele com a mesma dedicação com que os sócios os consociados frequentemente zelam pelo seu... Portanto, a negligência e o desperdício prevalecem...na administração dos negócios de uma empresa nessas condições..." Adam Smith também profetizou a crise atual? Ou simplesmente essas palavras demonstram exatamente o que ele observava na sociedade do seu tempo? Da mesma forma, Thomas Jefferson. Os dois, Adam Smith e Thomas Jefferson, eram homens cultos de sua época!...
(continua)

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