segunda-feira, 2 de março de 2009

49. A Profecia de Thomas Jefferson (continuação)


3. O preconceito do político da Virgínia contra os negociantes.

Já vimos que Thomas Jefferson foi um fazendeiro e advogado excepcionalmente culto. A sua mente fora formada na leitura dos escritores gregos e latinos, de Voltaire e os Enciclopedistas, de Montesquieu, John Locke e Jean Jacques Rousseau. Desconfio que até se deixou influenciar por Kant, pois no imperativo categórico de Kant parece inspirar-se a ética de Jefferson: “Sempre que fizer algo, mesmo que ninguém venha a saber, faça como se o mundo estivesse olhando para você”. Ele era um fazendeiro e advogado que se interessava pela política. E era um político atualizado com as idéias de seu tempo.
Jovem de vinte e seis anos, já era membro eleito da Câmara dos Cidadãos da Colônia da Virgínia, a maior e mais populosa das colônias, que se tornou o polo promotor da Revolução Americana. Esta colônia, como as demais doze outras, estava insatisfeita com as determinações naqueles tempos adotadas pela Inglaterra, que restringiam cada vez mais o âmbito de autonomia dos governos coloniais. Desgostavam, sobremaneira, aquelas que criavam ou aumentavam impostos sobre importação e exportação. Em 1769, a Câmara dos Cidadãos decidiu que só o povo de Virgínia tinha autoridade para criar impostos na Colônia. O governador dissolveu a Câmara. A Colônia da Virgínia aderiu ao boicote às importações da Inglaterra. No final de 1773, as Leis Intoleráveis provocaram a intensificação do clima de revolta. A Revolução Americana já havia iniciado.
Em 1774, advogados da Virgínia propuseram a criação do Congresso Continental para a elaboração de estratégia comum às treze colônias contra a Inglaterra. Jefferson redigiu o Resumo dos Direitos da América Britânica, como orientação da conduta dos delegados da Virgínia naqueles debates. Os mais importantes representantes da Virgínia foram George Wythe, o advogado professor e amigo de Jefferson, George Washington, um dos mais ricos e prestigiosos latifundiários da Virgínia, e Payton Randolph, eleito presidente do Congresso, que preferiram orientação política menos revolucionária. Por essa época, um amigo de Thomas Jefferson, Patrick Henry, entre os mais inflamados oradores da Virgínia contra a opressão inglesa, se expressava da seguinte maneira: “Quanto a mim, concedam-me a liberdade ou a morte!” Isso não lembra alguma frase conhecida?... O Congresso Continental criou a Associação Continental, a união das treze colônias contra a Inglaterra.
Começaram, então, as despesas com a Guerra da Independência... E também as despesas com o governo autônomo das colônias, porque as colônias agora tinham duplo governo, o inglês e o próprio. No Segundo Congresso Continental, instalado para discutir medidas práticas para luta contra o exército inglês, George Washington foi eleito comandante do exército norte-americano para a defesa dos cidadãos contra os ataques das tropas inglesas. Jefferson foi encarregado de redigir um documento justificando a reação armada. O seu texto da Declaração Sobre os Motivos e a Necessidade de Pegar em Armas foi amenizado por John Dickinson, representante da Pensilvânia. O Segundo Congresso também tratou de resolver o problema dos recursos financeiros necessários para manter o movimento armado. A Guerra da Independência foi financiada pelo papel-moeda, a Nota Continental. Curioso, um dos líderes da Revolução Americana, o famoso Benjamin Franklin, era partidário da emissão do papel-moeda, que, por sinal, era por ele precisamente fabricado nas prensas de seu jornal!...
No dia 4 de julho de 1776, no Segundo Congresso Continental, doze das treze colônias aprovaram, com modificações, o famoso texto, que Thomas Jefferson fora encarregado de redigir, da Declaração de Independência, o mais importante texto político da História moderna. Esse texto indicou, de forma clara, os valores que orientam a organização política da sociedade contemporânea. Mais notável ainda, é que durante praticamente um ano os Estados Unidos foram governados por um grupo de representantes do povo, eleito pelo povo. Foi governado por dispositivos emanados do povo através de seus representantes. O país não era governado por rei nem, como passaria a acontecer em futuro próximo, por presidente.
Thomas Jefferson retornou a Monticello. Não participou da guerra da independência. É outra página enodoada de sua vida. George Washington, dizem os historiadores, perguntava ironicamente: “O que é feito de Jefferson?” Deputado da Assembleia da Virgínia, Jefferson lutou por reformar a sociedade virginiana. Lutou por um governo originado no consentimento do povo, por leis que outorgassem a todos o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Conseguiu a aprovação de leis que favoreciam a transformação de grandes latifúndios em pequenas propriedades agrícolas. Dedicou-se à instituição da escola pública para todas as crianças indistintamente e à criação de biblioteca pública. Lutou pela liberdade de religião e de expressão. A liberdade religiosa foi reconhecida em 1786. Quando em 1779 ele foi nomeado governador da Virgínia, as tropas inglesas já estavam combatendo no seu Estado. No final de 1781, depois de ter fugido ao ataque das tropas invasoras, ele renunciou ao mandato. Nesse mesmo ano, o grosso do exército britânico, tocando a música O Mundo Virou de Ponta Cabeça, se rendeu às forças conjuntas de Geroge Washington e do Marquês de Lafayette, ajudadas pela marinha francesa, justamente em solo da Virgínia, na cidade de Yorktown. O tratado de paz foi assinado em Paris, em 1783.
Thomas Jefferson foi convocado, em 1784, para compor a missão encarregada de negociar acordos comerciais com os países europeus. Estava em Paris quando em 1789 a Revolução Francesa alcançou o poder político do país. A nova nação norte-americana, nesse período, apresentava problemas que requeriam soluções urgentes: a união política entre as colônias era tênue, a receita era insuficiente, fazendeiros eram executados por dívidas e o exército desagregava-se.
Por essa época, em 1787, foi convocada a Convenção Constitucional para elaborar uma constituição para os Estados Unidos. Em poucas semanas, um grupo de cidadãos idealistas e esclarecidos elaborou uma constituição revolucionária, um governo sem rei, que se tornou modelo para todas as constituições modernas e democráticas, cujo principal redator foi James Madison, o Pai da Constituição Americana.
Surgiu o primeiro país no mundo, nos tempos modernos, que não era governado por rei nem por tirano: um governo do povo, para o povo e pelo povo. O governante dos Estados Unidos da América era o povo. A Constituição norte-americana, seguindo o figurino britânico, elogiado por Montesquieu, dividia o Governo em três instituições: o executivo, o legislativo e o judiciário. O executivo era conduzido por um presidente, o legislativo era constituído por duas classes de representantes do povo, eleitos diretamente pelo povo (o senado, representantes dos Estados, e a Câmara, representantes dos cidadãos). O governante dos Estados Unidos da América era o povo e o judiciário era composto por juízes nomeados pelo presidente do executivo. O presidente do executivo e os membros do legislativo eram eleitos a cada quatro anos. O presidente recebia o seu mandato do povo indiretamente, através dos votos da maioria do colégio eleitoral, constituído pelos membros do legislativo. Instituía-se o governo do povo, sem rei, governado por um cidadão do povo, com mandato temporário. Era o primeiro governo democrático dos tempos modernos. A democracia ressurgia, noutra forma, é verdade, a democracia representativa, dois milênios depois, que ela desaparecera com Atenas.
Essa constituição manteve a soberania dos Estados, mas transferiu para a alçada da Federação os assuntos de política externa, segurança externa, economia doméstica e internacional. A Constituição não agradou a muitos cidadãos importantes da nova nação, entre eles a Thomas Jefferson. Não lhe agradava a subordinação dos Estados a um governo central. Parecia-lhe que o presidente era um rei, embora não vitalício. Ele sonhava com um povo educado, que não precisasse de governo forte nem de muitas leis. Ele advogava que as leis deveriam ser elaboradas sobretudo pelos Estados. Acabou conformando-se, sob a condição de se emitir uma Declaração de Direitos, cujos primeiros dez artigos, proteção dos direitos fundamentais do indivíduo, foram incluídos na Constituição em 1791.
Essas divergências constituíram as sementes para a formação de dois partidos políticos, o Federalista, que propugnava por um governo central forte, e o Democrata-Republicano, que advogava a soberania dos Estados e as liberdades individuais, contra a vontade de George Washington que repelia a idéia de partidos políticos, sob o argumento de que dividiam a nação em facções. O principal líder dos Federalistas era Alexander Hamilton, este representante de New York, ligado, portanto, à cidade e aos negociantes. Ele também fora valioso e bravo companheiro de George Washington na Guerra da Independência. Adepto de um governo forte, George Washington comungava com o pensamento federalista de reforço da união dos Estados. O principal líder do Democrata-Republicano era Thomas Jefferson. As divergências políticas entre Thomas Jefferson e Alexander Hamilton acabaram transformando-se em ódio pessoal.
George Washington, eleito o primeiro presidente dos Estados Unidos, procurava manter-se neutro nesses embates políticos e decidir consoante julgava conforme aos interesses do País. Nomeou Alexander Hamilton Secretário do Tesouro e Thomas Jefferson Secretário de Estado.
Fundada a nação norte-americana, os bancos proliferaram rapidamente. Em 1815 já existiam 208 bancos nos Estados Unidos. As notas bancárias se foram transformando no principal meio de pagamento. Só que elas não mereciam nenhuma confiança, porque na prática não possuíam garantia de resgate por ouro ou prata. Alexander Hamilton advogava a criação do Banco dos Estados Unidos. Thomas Jefferson a ele se opunha, porque não aceitava o Governo empresário. Os negociantes do Leste queriam um papel-moeda confiável. Os desbravadores do Oeste queriam uma moeda abundante. A marcha para o Oeste norte-americano foi impulsionada pelos bancos falidos e pela nota bancária desmoralizada. Isso até me lembra uma orientação que recebi de um brilhante Gerente da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, na década de 70 do século passado, a respeito de um empréstimo para investimento num empreendimento num Estado do Nordeste: “Não te preocupes. Se o empréstimo não for pago, a empresa lá foi implantada. Outro virá e fa-la-á funcionar.”
Mas, Thomas Jefferson, o fazendeiro culto, o cristão culto e o político culto tinha profundo preconceito contra qualquer banco, mesmo o banco estatal: “Sempre fui inimigo dos bancos, não dos que descontam em dinheiro, mas dos que põem o seu próprio papel em circulação... Devemos construir um altar para o velho papel-moeda da revolução, que arruinou os indivíduos mas salvou a república, e queimar aí todos os títulos de autorização de constituição de bancos, presentes e futuros, juntamente com as suas notas. Pois eles arruinarão tanto a república quanto os indivíduos.”Alexander Hamilton antevia a industrialização dos Estados Unidos, criou a Casa da Moeda e organizou o sistema tributário do País. Jefferson pretendia a continuidade do país agrícola, habitado por cidadãos esclarecidos e livres, unidos por um governo reduzido e poucas leis. A Jefferson também não agradava a criação de impostos pelo governo da Federação. Os impostos, ao ver dele, deviam ser criados pelos Estados.
Galbraith descreve a mentalidade que movia Thomas Jefferson e a sociedade do Estado de Virgínia em geral, naqueles embates políticos dos primeiros anos da nova nação: “Havia, antes de mais nada, a desconfiança em relação a bancos em geral, e a bancos grandes em particular. Assim como os tories da Inglaterra viam no Banco da Inglaterra algo que se opunha à autoridade e às instituições tradicionais, ou seja, a cunha do republicanismo, os cavalheiros de Virgínia viam no Banco dos Estados Unidos um instrumento de usurpação do poder financeiro e de urbanização pouco salutar. Também consideravam os bancos como uma espécie de fraude, um meio de transferir riqueza dos que trabalhavam honestamente no campo para os que viviam comprando e vendendo e, portanto, lucravam com o trabalho dos outros, ou para os que possuíam empresas industriais que eram antagônicas à sociedade agrária que consideravam natural e justa.”
O Banco dos Estados Unidos foi criado. Exigindo o pagamento das notas bancárias em moeda metálica, o Banco dos Estados Unidos colocou alguma ordem nos bancos norte-americanos. Ele durou até 1810, quando no governo de James Madison, político da Virgínia como Jefferson e como ele do Partido Democrata-Republicano, foi extinto. As emissões de notas bancárias se expandiram, então, e a Guerra de 1812 contra a Inglaterra precisava de recursos financeiros que a custeassem. Em 1816, ainda no segundo governo de James Madison, sob pressão de banqueiros de New York, foi criado o Segundo Banco dos Estados Unidos. Retornou, assim, algum controle das emissões de notas bancárias. Mas, o poder do presidente do Banco dos Estados Unidos era também visto como concorrente do poder do presidente da República. Em 1832, o presidente Andrew Jackson, inimigo do poder financeiro do grande banco, favorável aos pequenos agricultores e aos desbravadores do Oeste norte-americano, vetou os depósitos do Governo no Banco dos Estados Unidos, decretando, portanto, sua extinção. Os agricultores mais uma vez venceram nos Estados Unidos sobre o comércio, a indústria e os bancos. O campo ainda era mais importante do que a indústria. A Revolução Industrial apenas estava chegando aos Estados Unidos.

Esse texto de Thomas Jefferson, portanto, não é uma profecia. Ele é apenas a expressão do conservadorismo rural contra o estilo de vida da cidade, o conflito entre a economia agrária e a atividade industrial. Indiscutivelmente ele era também a tradicional constatação de que o poder de fabricar dinheiro, a principal atividade bancária, precisa ser controlada. É a expressão do pensamento tradicional de parte substancial de economistas, políticos e pensadores, que já se prolonga por cinco séculos de história, porque percebem a força social e política daqueles que detêm o poder de fabricar dinheiro.

(continua)

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