domingo, 8 de fevereiro de 2009

28. Longevidade (Carta à Minha Irmã)


Querida irmã.
Fui objeto de algumas lembranças e homenagens na vida. Quando, em 1983, o Eximbank dos Estados Unidos, o primeiro ou o segundo mais famoso e importante banco do mundo, completou 50 anos de existência, lá foi estampada em destaque a minha fotografia no opúsculo do Relatório Anual daquela instituição, comemorativo do fausto evento. Naquele ano fui citação do Journal of Commerce de New York, diário editado pelos magnatas dos negócios daquela metrópole. O procurador do Eximbank, com quem negociei ao longo de um ano um empréstimo de US$1,5 bilhão (o maior já concedido por aquele estabelecimento) e com quem atravessei os Estados Unidos proferindo conferências sobre negócios, dedicou-me, ao final de nossa convivência, uma estatueta de Abraham Lincoln com a dedicatória: “A Edgardo, que une a sabedoria de Adam Smith à oratória de Abraham Lincoln”! O Vice-Presidente do Eximbank, posto naquele cargo pelo Sr. Bush, então Vice-Presidente dos Estados Unidos, hoje Presidente, mantinha no seu gabinete os retratos da esposa e dos filhos, e também o meu!
Mas, como me sensibilizou ver meu nome encerrando a segunda página de dedicatória de seu livro “Primavera”! Li-a e reli-a muitas vezes. Já fora lembrado no opúsculo de Luís Brandão e por vezes mostro com vaidade os agradecimentos que foram estampados na primeira edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa do Aurélio pela minha colaboração em assuntos econômicos. É tão bom pertencer ao grupo limitado das pessoas estimadas pelos nossos irmãos!...
As crônicas de “Primavera”, revivendo com estilo simples fatos singelos do cotidiano, muitas vezes me emocionaram sob o toque de sua sensibilidade e por entre os meandros de sua observação arguta que se alça freqüentemente ao reino platônico das idéias onde se extasia na contemplação de um princípio eterno de Ética ou Sociologia ou Psicologia! Sempre li com laivos de inveja versos mais cerebrinos, como os seus, e de contida sensibilidade, que tocam o sentimento como o desenvolvimento insuspeito de um processo de xeque-mate sobre o tabuleiro de xadrez.
A frase inicial de sua crônica “Longevidade” recebe a chancela histórica dos conselhos de anciãos dos clãs primitivos e das primeiras sociedades civilizadas orientais, egípcia e européias. Provocou-me, porém, intensa reflexão sobre o estoque de informações, que armazeno em minha memória, provenientes das maravilhosas viagens que faço à posteridade através de longas horas de leitura.
Formei assim a idéia de que nos primórdios a Humanidade não valorizava a vida! O homem primitivo era cruel e sádico. Em certas tribos, as mulheres só casavam com jovens que já houvessem praticado vários homicídios. Os esquimós matavam os pais, quando se tornavam velhos e inúteis, por dever filial! O suicídio é fato banal, chegando as mulheres a se matarem por causa de simples repreensões dos maridos. O suicídio em tribos indígenas brasileiras tem merecido reportagens recentes na televisão!
Durante milênios o Bramanismo acreditou na samara (a reencarnação dos seres ao longo do tempo eterno). O karma permite que realidades físicas decorrentes das ações praticadas se transfiram nas séries das transmigrações, garantindo a ascensão na escala da perfeição dos seres ou o descenso, segundo o grau maior ou menor de virtude ou de vício praticado. Desta forma, os seres, de reencarnção em reencarnação, afastada qualquer idéia de continuidade pessoal, vão evoluindo até alcançar o Nirvana, isto é, “o não-ser”! Tradicionalmente os hindus procuravam apressar o processo evolutivo rumo ao Nirvana através do êxtase, isto é, da iluminação, provocado pela ingestão do soma (substância alucinógena). Aí pelo século VI AEC., a sociedade hindu começou a questionar a viabilidade de outras formas de abreviar essa prolongada trajetória rumo à felicidade, à paz, ao absoluto, ao eterno, ao “não ser”, ao Nirvana. O simples suicídio de nada adiantaria. Mas, Vandermana imaginou e ensinou que a ascese (ascensão) conduziria ao êxtase, à grande iluminação, ao Nirvana, com maior celeridade. Surgiu assim o jainismo, que advoga a mais rápida obtenção do Nirvana mediante a morte lenta pela fome. O jainismo ainda existe nos dias de hoje na Índia e Gândi era jainista.
Buda, naquele mesmo século VI EC, foi influenciado pelo jainismo e se retirou para a floresta onde praticou rigorosa ascese, alimentando-se de apenas um grão de arroz por dia. A certa altura do processo, todavia, teve a iluminação (daí passar a chamar-se Buda, isto é, o Iluminado) sobre o verdadeiro método de abreviar o longo número de reencarnações para mais celeremente atingir o Nirvana (a “não-existência”). Ele conheceu as Quatro Nobres Verdades: “1a.- Tudo é sofrimento. 2a.- A fonte do sofrimento é o desejo. 3a.- Extirpa-se o sofrimento eliminando-se o desejo. 4a.- Acaba-se com o desejo seguindo-se o caminho dos oito passos.” Noutras palavras, ele descobriu que o suicídio quer direto quer indireto (através da ascese) não é o método correto para alcançar o Nirvana. O método verdadeiro consistiria em práticas de natureza intelectual que extirparia o desejo: a morte no plano da atividade mental!
A literatura egípcia deixou exemplos de exaltação da morte:
“A morte está hoje diante de mim,
como a convalescença de um homem enfermo,
como a ida para o jardim depois da doença.”
Essa filosofia negativista tem seu lugar até entre os livros sagrados do Velho Testamento. Assim prega o Eclesiastes: “Por isso eu louvo mais os mortos que já morreram do que os vivos que ainda vão morrer. Mais venturoso que os mortos e os vivos é o que não nasceu, nem viu as más obras que se fazem debaixo do sol... Melhor é o bom nome do que ungüento precioso, e melhor o dia da morte do que o do nascimento.”
Teógnis de Mégara, século V AEC., escreveu:
“Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?
Só à morte sem dor podemos compará-la:
maior bem, só a paz duradoura do túmulo.”
Sófocles, século V AEC., cujas tragédias ainda são hoje aplaudidas pela elite intelectual, criou os seguintes versos:
“Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.
Mas se a luz já vimos,
o bem maior é voltar à noite de onde saímos,
o mais breve possível...
Finalmente, surge aquela que a todos cura,
a noiva desejada, de tristes núpcias,
sem dança e sem cantos,
a morte - tânatos - a última de todas.”
Seu concorrente, Eurípedes, não pensava diferentemente: “De muito tempo, considero a vida humana e acho-a sombria... Aos olhos de Zeus, não há neste mundo um só homem verdadeiramente feliz... Quem sabe se o que chamamos morte não será a vida, e a vida morte? Só uma coisa sabemos: é que os homens, enquanto vivem, não provam mais que dores e que só ao expirarem se libertam do sofrimento e deixam de gemer.”
Menandro, século III AEC., compartilhava da mesma idéia:
“Cedo morrem os eleitos dos deuses:
mais feliz é o homem que, tendo contemplado
este solene desfile de sol, estrelas, oceanos e fogo,
cedo volta para casa, levando
o coração ileso e tranqüilo.
Quanto mais cedo para casa voltares,
melhor dormirás.
Triste é o fim dos que obrigam
por eles a morte a esperar.”
Zaratustra, século VII AEC., foi o grande profeta de Ahura-Mazda, de quem se originavam o princípio do Bem (Ormuz) e o princípio do Mal (Arimã). No fim dos tempos, Ormuz triunfará sobre Arimã. Os homens honestos irão para o céu e os homens maus para o inferno. A vida terrestre não passa de uma vida preliminar e de provação.
Cícero, século I AEC., refletia: “A velhice, como a mocidade, tem suas glórias: uma tolerante sabedoria, a respeitosa afeição dos filhos, o arrefecimento dos desejos e ambições. A velhice pode temer a morte, mas só se não estiver enfibrada de filosofia. Para além do túmulo, na melhor das hipóteses, está uma vida feliz, e na pior, a paz eterna.”
Sêneca, que se suicidou por ordem de Nero, afirmou: “A lição final do estoicismo está no desprezo da vida e na escolha da morte. A vida nem sempre merece ser continuada... Que mais vil do que afligir-se na soleira da paz?... Em um ponto não nos podemos queixar da vida: ela não nos conserva em seu poder contra nossa vontade... Quanto a mim, caro Lucílio, já vivi mais do que o bastante. Enchi a minha medida. Espero a morte. Adeus.”
O Cristianismo, sabemos, continuou a linha de pensamento afirmativo de uma vida eterna futura, feliz ou desgraçada, conforme os méritos de cada um, enquanto rebaixa a vida terrena para um período de provação de fidelidade a Deus, que já fora professado por Zaratustra.
No século III EC., Mani de Ctesifonte (cidade da Pérsia) propagou a idéia de que “O universo está dividido nos reinos da Luz e das Trevas. Satã, o deus das Trevas, criou o Homem, em quem os anjos do deus da Luz inocularam alguns elementos de luz. A mulher é a obra-prima de Satã e o principal agente na condução do homem para o pecado. O homem será salvo através do ascetismo (jejum, vegetarianismo, abandono do sexo), idolatria e feitiçaria.”
A doutrina de Mani (o Maniqueísmo) teve ampla difusão entre os cristãos dos primeiros séculos dando origem aos anacoretas e cenobitas, tais como os famosos Antônio, Pacômio, Macário e Simeão Estilita, que fugiram para o deserto para viver solitários em profunda renúncia da vida terrena.
Al-Maarri, poeta árabe do século X, pensava: “A vida é uma doença cujo único remédio é a morte...”
No início do segundo milênio tinha início o movimento humanista que logo evoluiu para o Renascimento italiano, onde o homem começou a dar valor à vida terrena, porque a vida se tornara mais rica e mais cheia de encantos.
Poeta, conhecido como o Arquipoeta, assim se expressava no século XII:
“Quero caminhar pela grande estrada,
jovem e sem arrependimento,
em meus vícios envolto,
e esquecido de todas as virtudes.
Desejo mais os prazeres do que o céu,
e já que em mim a alma morta está,
preferível é pois
salvar-me o corpo.
Já tomei por isso a minha decisão:
quando chegar a minha hora,
deixai-me morrer numa taverna
com um jarro de vinho ao lado.”
Um poeta francês, de nome também desconhecido, dizia no século XIII: “O que iria fazer no paraíso? Pouco se me dá ir para lá, o que apenas desejo é ter Nicolette... Pois para o paraíso só vão certas pessoas como, por exemplo, sacerdotes idosos, velhos, paralíticos e aleijados, os quais passam os dias e as noites tossindo diante dos altares... Nada tenho a fazer com tal gente. Já para o inferno poderei ir. Pois é lá que vão os grandes mestres e os belos cavaleiros... e os homens leais. Com eles irei eu também. E para lá vão também as belas e corteses damas que têm amigos... além do esposo... Com esses eu irei, contanto que tenha a meu lado Nicolette, a minha muito doce amiga.”
Iacopo da Lentino, século XIII EC., impunha condições para entrar no céu:
“Por mim quero servir a Deus de coração
para que possa entrar no paraíso...
Sem minha dama, contudo, não quero nem pensar em ir,
pois sei que não teria lá
nenhum prazer com ela ausente, isso eu sei.”
O grande humanista Giovanni Pico della Mirandola, no século XV, condensava o pensamento humanista da época: “Essa é a dívida culminante de Deus, a suprema e maravilhosa felicidade do homem... o poder ele ser o que quiser... Mas, Deus, o Pai, dotou o homem, desde o nascimento, com as sementes de todas as possibilidades e de toda a vida.”
Marcantônio Flamínio, no século XVI, dizia poeticamente:
“Vivestes, pai, bem e feliz,
nem pobre nem rico,
sábio o bastante e sempre eloqüente,
sempre forte e de mente sã,
amável e de inigualável bondade.
Agora, com oitenta anos completados,
ireis para sempre para as benditas terras
dos deuses.”
Will Durant, comentando a época da Renascença, disse: “...não havia o “homem da Renascença”. Havia homens que se encontravam de acordo apenas com uma coisa: que jamais a vida fora vivida tão intensamente quanto naquele tempo. A Idade Média dissera, ou pretendera dizer, um não à vida; a Renascença, com todo o seu coração e alma, dissera sim.”
Carlos, duque de Orléans, no século XV, poeticamente expressava sua filosofia de vida:
“Saudai por mim toda a companhia
onde agora estais alegres,
e dizei que de bom grado estaria
com eles, mas não poderei estar,
devido à velhice que me tem cativo.
No tempo passado a Juventude tão alegre
me governava; ai de mim! Já não o sou mais:
fui apaixonado, agora não sou mais,
e em Paris levava uma vida boa.
Adeus, tempo bom, não poderei reaver-vos!...
Saudai por mim toda a companhia.”
Esse ímpeto pela vida consolidou-se com a Revolução Industrial, quando a Humanidade descobriu meios e formas de atenuar o sofrimento, aumentar o lazer e intensificar o gozo da vida e elastecer a existência em condições de conforto. Para os dias de hoje, o Humanismo fala sobretudo na voz de Olavo Bilac: “Terra, melhor que o céu! Homem, maior que Deus!” O capitalismo deu condições de privilegiar-se a vida sobre a morte.
Minha irmã querida, não lhe quero ofender os sentimentos religiosos. Esta última frase é mera constatação do que pensa o homem moderno, existencialista e materialista.
(Escrito no ano de 1992)

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