sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

33. A Vida Numa Conjuntura Inflacionária (conclusão)


Os casamentos se tornaram mais numerosos, sobretudo nas cidades. Miséria por miséria, o temor de que a espera durasse anos impelia os jovens a correr o risco de casar mais cedo.
Os roubos recrudesceram. Padarias eram pilhadas. Nos restaurantes de luxo, os clientes só recebiam os talheres após terem feito um depósito no caixa, porque a louça desaparecia regularmente. O medo de assaltos conduziu a complicados sistemas de proteção de imóveis e apartamentos: cadeados de segurança, portas duplas, grades de ferro etc.
Floresceu o comércio de aluguel de quartos de apartamentos. A locação era cobrada por dia. O cliente ideal era o turista estrangeiro. O pagamento em dólar dava direito a tratamento especial. Alguns mais audaciosos alugavam-nos para encontros amorosos.
A incerteza do amanhã desenvolveu, entre os que possuíam dinheiro, uma sede de prazeres, de divertimentos. Entre os pobres, havia os que se dispunham a se vender. Em anúncios de jornais, rapazes se ofereciam para levar felicidade a viúvas ricas, e meninas de quinze anos se entregavam a senhores idosos. Proliferaram os espetáculos de travestis, lésbicas e homossexuais. Novos-ricos, traficantes e bilionários davam-se a orgias e espetáculos de nudismo. Gastavam fortunas com banquetes, enquanto um operário precisava trabalhar um mês para ganhar o equivalente ao preço de um par de sapatos. Os que tinham dólar ou mercadoria de valor podiam satisfazer todas as perversões: cocaína, espetáculos pornográficos e masoquismo (prostitutas passeavam pelas calçadas, com chicote na mão e calçando botas vermelhas).
O povo foi atraído por profetas de seitas religiosas e pelo misticismo oriental. Espiritismo, astrologia e telepatia floresciam na alta sociedade.
A especulação era a conseqüência mais natural da inflação. Os alemães, quando tinham meios para isso, corriam na direção de tudo o que não se desvalorizava. Os mais ricos compravam fábricas e imóveis. Outros se contentavam com diamantes, pedras preciosas, dólares. Os agricultores investiam em máquinas e equipamentos. Os que dependiam do dia-a-dia tentavam, com dificuldade, formar um estoque de quilos de açúcar e de latas de conservas. A especulação se tornara uma profissão. Os espertos utilizavam marcos para comprar dólares, depois se desembaraçavam dos dólares comprando mercadorias não-perecíveis e facilmente transformáveis em moedas. Sem muito esforço, conseguiam viver confortavelmente. Eram os novos-ricos, aos quais se somavam os que se endividaram logo após a guerra para comprar propriedades fundiárias.
A Alemanha se tornara um paraíso para os estrangeiros. Em 1922, todos os hotéis da Floresta Negra estavam ocupados por suíços, e os da Renânia por holandeses. E estrangeiros eram os principais clientes das grandes lojas das principais cidades alemãs. Os vendedores perguntavam automaticamente em que hotel deviam entregar as compras. Os trens comportavam três classes, e os ônibus, quatro. A terceira e a quarta eram ocupadas pelos alemães. A primeira e a segunda recebiam quase exclusivamente estrangeiros. Aumentou assim a xenofobia na população alemã. Os estrangeiros, acusados de despojar a Alemanha, eram mal vistos. Nas cidades turísticas existiam dois preços: um, mais barato, para os alemães; outro, 50% mais caro, para os estrangeiros.
Os mais atingidos pela inflação foram os possuidores de pequenos rendimentos e os aposentados. Dispondo regularmente de uma soma fixa que até então lhes permitia viver, eles foram forçados, com mais de sessenta anos, a encontrar expedientes para não sucumbir à miséria. Uns vendiam tudo o que lhes pudesse trazer algum proveito: jóias, quadros ou móveis. Outros alugavam ou sublocavam parte do seu apartamento. Os mais desprovidos esperavam a morte ou arriscavam-se a antecipar-se a ela.
Caiu a freqüência nas universidades, cujos alunos tradicionalmente provinham da média burguesia, particularmente das famílias de profissionais liberais. Desinteressando-se pelos cursos, preferiam dar aulas particulares, pagas com ovos, manteiga e batatas, para não morrer de fome.
Os trabalhadores intelectuais foram mais lesados do que os braçais. Fidalgos, industriais e novos-ricos tinham fraca curiosidade intelectual. Nem as camadas médias nem os operários tinham condições para satisfazer necessidades de cultura. Além disso, com baixa taxa de sindicalização, difícil era a defesa comum de seus interesses. Nada obstante isso, intensas eram as reivindicações salariais por parte da classe trabalhadora, o que contribuiu para o significativo aumento das despesas gerais das empresas alemãs.
A Alemanha foi condenada a um isolamento cultural. Impossível comprar jornais, livros ou revistas estrangeiros. O abastecimento das bibliotecas científicas reduzia-se a quase nada. Muito onerosa a exportação dos livros alemães, porque os livreiros exigiam taxas suplementares e porque tarifas postais eram tão altas que inviabilizavam a remessa na própria Alemanha e para o exterior. Os contatos se tornaram raros para muitos escritores que tinham de privar-se de alimento para franquear cartas. Um romancista alemão definiu a Alemanha do início de 1923 como um hospício para devoradores de cifras. Não se lêem mais livros. Quase ninguém pode comprá-los. Seu preço médio equivale a um dia de salário de um alto funcionário. Apenas 3% da população, estima ele, merece ser chamada rica. O resto sobrevive sob privações ou morre de fome. O preço do papel e as despesas de impressão haviam provocado forte aumento no preço do livro. Os editores diminuíram a proporção de obras de jovens autores.
Esse período da inflação não foi um calvário para todo mundo. Os capitalistas construíram fortunas colossais através da aquisição de bens sólidos. O industrial Hugo Stinnes, em 1923, quadruplicou seus bens graças a empréstimos e possuía 4.500 empresas! As indústrias Krupp, Thyssen e Klochner não passavam por dificuldades e, em 1924, pode ser feito investimento considerável em fábricas ou produções novas. Data dessa época a indústria radiofônica. Um terço da frota comercial é restaurada. O material desenvolvem seus serviços.
Excetuando-se os cereais, cujos preços caíram, os agricultores se beneficiaram na venda de seus produtos no imediato pós-guerra. A partir de 1923, os agricultores foram afetados pela desvalorização do marco. O prejuízo foi atenuado com o investimento em material e numa transformação das condições de vida (compra de tecidos, imóveis, pianos e muitas outras mercadorias). Em 1923 a rede telefônica ficava sobrecarregada a certas horas, porque os agricultores se informavam regulamente sobre o valor do dólar.
A inflação gerou situações diferentes, segundo os grupos sociais. De região em região, de cidade em cidade, a situação econômica era diferente. Marcantes em Berlim, menos nas cidades pequenas, embora também a estas as diferenças entre miséria e riqueza não fossem alheias. Nas cidades, que contavam com grande proporção de funcionários dos correios ou ferrovias, os contrastes entre ricos e pobres eram mais atenuados, porque seus salários acompanhavam o custo de vida, graças a abonos compensatórios dados pelo Estado. Nas cidades que viviam do comércio, sobretudo com o estrangeiro, tinha-se até a impressão de relativa prosperidade.
Ingmar Bergman produziu um filme, “O Ovo da Serpente”, cuja apresentação fez nos seguintes termos: “Estamos no dia 3 de novembro de 1923. O maço de cigarros custa 4 bilhões de marcos. A maioria das pessoas perdeu toda a fé no futuro...” O Ovo da Serpente consegue traduzir, com força e verossimilhança, um aspecto da atmosfera consecutiva ao fenômeno da inflação. Esse aspecto é o da miséria em que se debatiam milhares de cidadãos, reduzidos a expedientes para sobreviver. Uma das seqüências mais sugestivas do filme apresenta, num fim de noite, um cavalo morto em plena rua, que ainda atrelado à carroça é logo desmembrado por duas ou três pessoas e cuja carne é imediatamente oferecida aos raros noctívagos, a preço exorbitante, por uma mulher de cujas mãos escorre sangue!...
(Escrito no ano de 1990)

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