A Terra já fora durante milhões de anos palco da transformação por que passava o animal cultural. Há 2,5 milhões de anos, as portentosas energias de sobrevivência, guiadas pelas caprichosas leis da seleção natural, haviam desaguado nesse mamífero singular, o hominídio especial, Homo Habilis, cuja característica distintiva era a cultura. Durante milhões de anos, o homem alimentara-se através da coleta de frutos e da caça de animais, graças à criação de novos instrumentos de pedra, madeira e osso, transmitindo às gerações subseqüentes essa base tecnológica cada vez mais ampliada e aperfeiçoada, desde a faca, a sovela e a lança até o arpão e o arco e flecha. Aprendeu a locomover-se como bípede e, já Homo Erectus, descobriu o fogo, quando se tornou andarilho compulsivo e se espalhou por todos os continentes. Evoluiu para o Homo Sapiens Neandertal, que se mostrava intrigado com o problema do devir, da morte e do renascimento, bem como produzia insinuações iniciais da cultura religiosa e filosófica, e até se dava provavelmente à prática da medicina cirúrgica.
Esse assombroso fluxo das forças evolutivas alcançara por fim, há cerca de cinqüenta mil anos, o Homo Sapiens Moderno, sob a intrigante expansão, aperfeiçoamento e especialização do cérebro, conduzidos pela utilização da visão biocular frontal em combinação com a transformação das patas dianteiras em mãos, cada vez mais ativas e hábeis. Desde os primórdios, foi-lhe característica a cultura artística. Pintor, há dezenas de milhares de anos, explorava o relevo das rochas e já descobrira as técnicas da perspectiva, do claro-escuro e das cores, que empregava na pintura de cenas de caça sobre as paredes das cavernas, focando obsessivamente as presas - o mamute, o bisonte, o urso, o veado, o cavalo, o boi -, onde, só raramente, surgia a figura humana, tudo, por vezes, com um toque de erotismo. Escultor, apreciava criar as estatuetas da Mãe Terra, imagens de mulher nua, esteatopígia e de seios fartos, visivelmente instigado pelo fenômeno da fertilidade e pelo ardor erótico.
Pelos fins da última era glacial, quando a fauna e a flora se modificavam e o nível das águas oceânicas se elevava, o Saara ainda era vasta planície de relva e bosques, entrecortada por lagos e rios. Ali ao lado, próximo ao Mar Mediterrâneo que se alargava e cobria novas porções de terra, o Homem se assentara, dez mil anos antes de Cristo, nas então férteis terras de Jericó na Cisjordânia e erguera um altar. Por essa mesma época, não muito longe dali, em Shanidar - uma vila curda iraquiana nos montes Zagros, 80 km ao norte de Ebril -, ele também se estabelecera iniciando a domesticação dos animais. Dois milênios depois, ele cercara o assentamento de Jericó com muro e, internamente, facilitara o trânsito com uma passagem em degraus. Agora, no sétimo milênio antes de Cristo, em Jericó já se construíam casas retangulares com chão de terra socada e nos altares se cultuavam os antepassados. Em Jarmo, a 55 km de Kirkuk, no Norte do Iraque, o Homem já se fixava cultivando o trigo e criando ovelhas e cabras.
Avançava-se na revolução neolítica. O Homem, o animal cultural, tornava-se civilizado, isto é, urbano. Já na segunda metade do sétimo milênio antes de Cristo, em Çatal Huyuk, o Homem edificou casas de tijolo de barro, cujas paredes por primeiro adornou de pinturas de animais, homens e até elementos geométricos. Pela primeira vez essas pinturas retrataram exclusivamente homens, os soberbos e rodopiantes Dançarinos Leopardos. Foi lá que, por esses mesmos tempos, quando parece ter realizado ainda as primeiras importações, o Homem elaborou o primeiro mapa conhecido, o plano de uma cidade.
Seria o mapa obra exclusiva do homem civilizado? Indiscutivelmente, só o homem civilizado, dotado dos requintes da cultura científica, tecnológica e artística, está apto a produzir um mapa e especificamente um mapa-múndi. Assim mesmo, todo homem elabora os seus mapas mentais do meio ambiente. Sabe-se que povos primitivos da idade da pedra lascada produziram, em tempos muito posteriores, mapas de caminhos, cidades, montanhas, ilhas e até percursos marítimos, cujo valor representativo estava condicionado pelas deficiências da cultura respectiva. Assim, o mapa, como representação do espaço conhecido, é uma produção do homem e pode ter sido elaborado pelo homem paleolítico, antes que haja sentido a necessidade de assentar-se. Mas o mapa é uma obra humana que sofre intensa influência do aperfeiçoamento da cultura. A civilização ou a urbanidade, sem dúvida, sentiu mais necessidade do mapa. E à medida que se torna mais requintada a cultura do homem civilizado, novos mapas se fazem necessários para representar novos espaços ou novos aspectos do espaço já conhecido, e até mesmo em novas formas de mapa facultadas por novas tecnologias. O mapa é obra emblemática do nível cultural do homem civilizado. É a forma como ele percebe o meio ambiente, a Terra e o Universo sob o ângulo de sua cultura e de seu interesse, dentro dos limites impostos pelo alcance momentâneo do seu conhecimento.
Indiscutivelmente, por tudo isso, Çatal Huyuk, 6300 anos a . C., foi o berço adequado para acolher o primeiro mapa elaborado pelo homem. Dotado de pendor e técnica artística, preocupado consigo mesmo, conhecedor de outros assentamentos humanos cujos produtos ambicionava, o cidadão de Çatal Huyuk tinha realmente interesse em confeccionar o mapa de um assentamento que conhecera ou pretendia edificar ou até, por que não?, ambicionava pilhar!...
(Escrito no ano de 1997)
Esse assombroso fluxo das forças evolutivas alcançara por fim, há cerca de cinqüenta mil anos, o Homo Sapiens Moderno, sob a intrigante expansão, aperfeiçoamento e especialização do cérebro, conduzidos pela utilização da visão biocular frontal em combinação com a transformação das patas dianteiras em mãos, cada vez mais ativas e hábeis. Desde os primórdios, foi-lhe característica a cultura artística. Pintor, há dezenas de milhares de anos, explorava o relevo das rochas e já descobrira as técnicas da perspectiva, do claro-escuro e das cores, que empregava na pintura de cenas de caça sobre as paredes das cavernas, focando obsessivamente as presas - o mamute, o bisonte, o urso, o veado, o cavalo, o boi -, onde, só raramente, surgia a figura humana, tudo, por vezes, com um toque de erotismo. Escultor, apreciava criar as estatuetas da Mãe Terra, imagens de mulher nua, esteatopígia e de seios fartos, visivelmente instigado pelo fenômeno da fertilidade e pelo ardor erótico.
Pelos fins da última era glacial, quando a fauna e a flora se modificavam e o nível das águas oceânicas se elevava, o Saara ainda era vasta planície de relva e bosques, entrecortada por lagos e rios. Ali ao lado, próximo ao Mar Mediterrâneo que se alargava e cobria novas porções de terra, o Homem se assentara, dez mil anos antes de Cristo, nas então férteis terras de Jericó na Cisjordânia e erguera um altar. Por essa mesma época, não muito longe dali, em Shanidar - uma vila curda iraquiana nos montes Zagros, 80 km ao norte de Ebril -, ele também se estabelecera iniciando a domesticação dos animais. Dois milênios depois, ele cercara o assentamento de Jericó com muro e, internamente, facilitara o trânsito com uma passagem em degraus. Agora, no sétimo milênio antes de Cristo, em Jericó já se construíam casas retangulares com chão de terra socada e nos altares se cultuavam os antepassados. Em Jarmo, a 55 km de Kirkuk, no Norte do Iraque, o Homem já se fixava cultivando o trigo e criando ovelhas e cabras.
Avançava-se na revolução neolítica. O Homem, o animal cultural, tornava-se civilizado, isto é, urbano. Já na segunda metade do sétimo milênio antes de Cristo, em Çatal Huyuk, o Homem edificou casas de tijolo de barro, cujas paredes por primeiro adornou de pinturas de animais, homens e até elementos geométricos. Pela primeira vez essas pinturas retrataram exclusivamente homens, os soberbos e rodopiantes Dançarinos Leopardos. Foi lá que, por esses mesmos tempos, quando parece ter realizado ainda as primeiras importações, o Homem elaborou o primeiro mapa conhecido, o plano de uma cidade.
Seria o mapa obra exclusiva do homem civilizado? Indiscutivelmente, só o homem civilizado, dotado dos requintes da cultura científica, tecnológica e artística, está apto a produzir um mapa e especificamente um mapa-múndi. Assim mesmo, todo homem elabora os seus mapas mentais do meio ambiente. Sabe-se que povos primitivos da idade da pedra lascada produziram, em tempos muito posteriores, mapas de caminhos, cidades, montanhas, ilhas e até percursos marítimos, cujo valor representativo estava condicionado pelas deficiências da cultura respectiva. Assim, o mapa, como representação do espaço conhecido, é uma produção do homem e pode ter sido elaborado pelo homem paleolítico, antes que haja sentido a necessidade de assentar-se. Mas o mapa é uma obra humana que sofre intensa influência do aperfeiçoamento da cultura. A civilização ou a urbanidade, sem dúvida, sentiu mais necessidade do mapa. E à medida que se torna mais requintada a cultura do homem civilizado, novos mapas se fazem necessários para representar novos espaços ou novos aspectos do espaço já conhecido, e até mesmo em novas formas de mapa facultadas por novas tecnologias. O mapa é obra emblemática do nível cultural do homem civilizado. É a forma como ele percebe o meio ambiente, a Terra e o Universo sob o ângulo de sua cultura e de seu interesse, dentro dos limites impostos pelo alcance momentâneo do seu conhecimento.
Indiscutivelmente, por tudo isso, Çatal Huyuk, 6300 anos a . C., foi o berço adequado para acolher o primeiro mapa elaborado pelo homem. Dotado de pendor e técnica artística, preocupado consigo mesmo, conhecedor de outros assentamentos humanos cujos produtos ambicionava, o cidadão de Çatal Huyuk tinha realmente interesse em confeccionar o mapa de um assentamento que conhecera ou pretendia edificar ou até, por que não?, ambicionava pilhar!...
(Escrito no ano de 1997)
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